Brumas de Sintra

Ponto de encontro entre a fantasia e a realidade. Alinhar de pensamentos e evocação de factos que povoam a imaginação ou a memória. Divagações nos momentos calmos e silenciosos que ajudam à concentração, no balanço dos dias que se partilham através da janela que, entretanto, se abriu para a lonjura das grandes distâncias. Sem fronteiras, nem limites

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O meu nome é Maria Elvira Bento. Gosto de olhar para o meu computador e reconhecer nele um excelente ouvinte. Simultaneamente, fidelíssimo, capaz de guardar o meu espólio e transportá-lo, seja para onde for, sempre que solicitado. http://brumasdesintra.blogspot.com e brumasdesintra.wordpress.com

terça-feira, 21 de julho de 2009

A NOITE DE FIM DE ANO EM BOLAMA


Era a última noite de 1963. Uma noite sem fim, em Bolama (Guiné). Uma noite purificada, esculpida na fantasia inocente de quem gosta de se aconchegar na harmonia da alma. Sentia a serena sensação do entusiasmo e, por isso, ao deixar cair sobre a pele o vestido de cetim vermelho era o reflexo da beleza. Cingido ao corpo, modelava-o e, sem o mínimo embaraço, senti-me radiante, luminosa, belíssima. Quase flutuava no espaço tal era a leveza do encanto. A noite, no hotel do sr. Patrício, prometia.


Ainda em casa, antes do gerador da ilha ser desligado, dava os últimos retoques na pintura dos olhos que decorria sem sobressaltos. Tinha tomado banho com Badebas (mandado vir de Lisboa) e um agradável aroma envolvia o quarto, como se fosse nuvem que me cingia com sensualidade. Nada podia ser deixado ao acaso. A noite pedia requinte para que a reunião invulgar naquelas paragens onde o perigo se misturava com uma beleza desmedida. Havia um jantar melhorado (sem arroz de tomate e peixe frito, prometia o convite verbal feito pelo simpatiquérrimo sr. Patrício) com música ambiente e participações de elementos militares destacados na zona que tocavam violino, guitarra e acordeão. Pedir mais era querer agarrar a Lua.


Sobre o vestido de cetim vermelho, que ondulava na cadência dos meus passos ritmados, coloquei uma capa de veludo negro. Sentia-me divina. O fascínio estava comigo quando saí a porta de armas do quartel e percorri o curto espaço que me separava do Hotel. Ao longe, vi que todo ele estava iluminado por uma espécie de archotes e muitas velas que tremelicavam sob um tecto fabuloso de estrelas brilhantes. A varanda era um desafio ao Infinito, tão bela que estava nas suas variadíssimas flores matizadas, entrelaçadas e luzes colocadas em recantos que lhe projectavam sombras e promessas. Era um palácio que flutuava.


Respirava profundamente embevecida com a noite de Fim de Ano na Guiné que me oferecia espaços de deslumbramento que desconhecia. Tudo era de uma simplicidade tocante mas uma magistral obra de alquimista. Entrei e vi que os presentes apesar de não serem muitos enchiam a sala. A única vestida de vermelho era eu. Não havia trajes de gala, alguns camuflados faziam presença. Os olhares eram espelhos,varandas, que se abriam para mundos íntimos e distantes.


O alferes Verde, chegado da ilha das Galinhas, queria sentir o entusiasmo da noite mas destacado há tantos meses na solidão, havia nele um desassossego evidente. O alferes Valentim, do quartel de Bolama, por certo sentia mais do que nunca a nostalgia da filha recém-nascida que ainda não conhecia. O capitão Ferreira, qual Peter O'Toole, absolutamente cacimbado, não conseguia aguentar a tensão da guerra que o rodeava. Inadaptado e apaixonado pela pessoa errada vivia num inferno de sentimentos (acabaria por ser evacuado para Bissau e, mais tarde, Lisboa. Tentou o suicídio).


O comandante de S. João estava sereno ao lado da lindíssima mulher que deixava os presentes e todos os militares da zona com a cabeça à razão de juros. Ela era uma provocação mas estava firme, e por certo feliz, ao lado do marido, na ilha de S. João, indiferente aos falatórios. Oficiais de Bolama marcavam presença no jantar, que incluiu ostras, lagosta, frango, doces, vinho e, claro, champanhe. Quando a meia-noite se aproximava, todos foram para o meio do salão, deram as mãos numa roda ao sabor da melodia que se escutava e, unidos, partiram para os espaços das suas saudades, ficando, ali, numa ilha distante que desafiava medos e coragem.


Houve baile. Dançou-se pela noite fora, conviveu-se; mesclou-se a habitual tensão por uma alegria que ser sem fictícia não era totalmente real mas tinha algo de libertadora. Confraternizou-se. Trocaram-se presentes que sabiam a vida. Todo o Hotel vibrava com as emoções da noite numa zona de guerra (nos arredores. O centro era calmo). Cantou-se o fado, declamou-se. O Comandante de Bolama discursou. Ouviram-se gargalhadas e palmas. Uniram-se mãos e juntaram-se corpos e a vida envolveu-nos numa noite musical de corações palpitantes. Entramos em 1964 com a alma lavada imbuída de emoções, desejos e esperanças. Nunca como naquela noite o Hotel do sr. Patrício foi tão empolgante, tão majestoso, e tão bonito.


Em 2009, deixo uma rosa vermelha na primeira ruína deste hotel que tocar nos meus pés. Hoje, agora, ele existe só para mim...

*

Só conheço uma liberdade, e essa é a liberdade do pensamento
(Saint-Exupéry)

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1 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Boa noite... Enviaram-me o seu blog, uma vez que estou numa missão humanitária a ser desenvolvida em Bolama. Como pode imaginar já são poucos os edificios em que as paredes estejam intactas. A que Hotel se refere? Se quiser posso enviar-lhe algumas fotos...

29 de dezembro de 2010 às 23:38  

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