Brumas de Sintra

Ponto de encontro entre a fantasia e a realidade. Alinhar de pensamentos e evocação de factos que povoam a imaginação ou a memória. Divagações nos momentos calmos e silenciosos que ajudam à concentração, no balanço dos dias que se partilham através da janela que, entretanto, se abriu para a lonjura das grandes distâncias. Sem fronteiras, nem limites

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O meu nome é Maria Elvira Bento. Gosto de olhar para o meu computador e reconhecer nele um excelente ouvinte. Simultaneamente, fidelíssimo, capaz de guardar o meu espólio e transportá-lo, seja para onde for, sempre que solicitado. http://brumasdesintra.blogspot.com e brumasdesintra.wordpress.com

domingo, 23 de março de 2008

COMBATE NO LESTE DE ANGOLA


As viagens para operações no Leste eram sempre fatigantes e perigosas mas para o capitão Fernandes aquela pareceu-lhe ir ser a pior de todas.

-Simples pressentimento, mau pressentimento, que não posso alimentar, dizia para si próprio, indiferente aos solavancos do transporte que o deixaria, horas depois, no centro das operações, num território de péssima fama dado às sistemáticas e sangrentas lutas (e emboscadas) aí travadas.

Deixou correr livremente os pensamentos e acabou por dormitar. O combate acabaria por se desenrolar num dia de chuva torrencial e foi extremamente duro para as tropas intervenientes. Cresceu de intensidade, de tal forma que muitos soldados entraram em desespero. A operação durou dias, mas os objectivos não estavam a ser conseguidos e as várias companhias que se deslocaram ao Leste, exaustas, acabaram por cumprir a missão mas com elevadas baixas. O dia tinha nascido debaixo de um tiroteio infernal e inesperado, o que obrigou mudanças na estratégia. Os capitães Sousa Aragão, Afonso Duarte e Cardoso Fernandes estavam com os seus homens numa área pressionada pelo fogo inimigo e suportaram-na, esperando o apoio das forças da retaguarda, dispersas pela zona. Apoio que tardou.


No intenso tiroteio Cardoso Fernandes reparou que os capitães Afonso e Sousa tinham sido atingidos e estavam inanimados no solo. Ignorando a gravidade dos seus próprios ferimentos deu instruções aos homens para se dividirem em grupos e atacarem em três frentes, tentando cercar o inimigo sob o factor surpresa. Levou consigo dois soldados e pediu auxílio médico. O rebentamento de granadas tornou o local num inferno, e os dois soldados são obrigados a distanciar-se do capitão. Uma nuvem de poeira intensa, de fumo e de fogo, separou-os. Simultaneamente o inimigo ganhou terreno, o que obrigou as tropas portuguesas a recuarem. Nessa alteração de táctica de combate ficaram isolados os três oficiais portugueses. Cardoso Fernandes conseguiu chegar junto de Sousa Aragão e de Afonso Duarte e verificou que Sousa não tinha sobrevivido aos ferimentos que lhe tinham esfacelado brutalmente a zona da cabeça. Afonso, apresentava sérias dificuldades em respirar, atingido no peito e braço direito. Notava-se o esforço que fazia para não desfalecer.


O capitão Fernandes avaliou a situação no momento e, rapidamente, pôs em prática um plano que lhe pareceu ser, no momento, a única tentativa possível. Antes, tirou o camuflado e despiu a camisola interior. Voltou a vestir o camuflado, tendo o cuidado de sujar a cara de graxa, tal como fez aos outros dois oficiais. Rasgou a camisa e tentou amparar as feridas que no estômago e no ombro sangrava abundantemente. Deu a Afonso Duarte um pouco de água e um comprimido para as dores. Teria sido melhor que o adormecesse, mas necessitava do seu apoio para transportar o corpo (sem vida) do capitão Aragão. A muito custo arrastaram-se até a um declive que terminava perto de uma ponte. Daí, Fernandes, pareceu-lhe ter visto um local que daria um bom esconderijo. O tiroteio intensificava-se e tornou o terreno num autêntico inferno, facto que ajudou na fuga, terrivelmente penosa para os dois sobreviventes. Afonso Duarte não aguentou as dores e voltou a desmaiar e Cardoso Fernandes viu-se obrigado a deixar o corpo de Sousa Aragão e transportar Afonso para uma zona perto do rio.


Zona com bastante vegetação, o que facilitou o esconderijo. Fernandes deixou aí o colega e regressou ao ponto de partida para trazer o corpo, já sem vida, de Sousa Aragão e juntá-lo ao inanimado Afonso Duarte. Olhando os dois companheiros, Cardoso Fernandes não desesperou e não reagiu. Estava numa fase de nítido adormecimento físico e de alerta mental. O subconsciente funcionou num estado de letargia penoso e em "piloto automático". Apesar disso, sentiu que o inimigo estava por perto. Com a calma possível, colocou o corpo de Afonso por cima do de Sousa e, rapidamente, executou uma camuflagem perfeita que não denunciava nenhum dos colegas. Em seguida, entrou no rio e ficou totalmente coberto pela água respirando por uma pequena cana que tinha conseguido partir. Não soube nunca o tempo que ali esteve. Perdeu a noção. Ficou insensível à dor. Resistiu sem forças e, simultaneamente com uma resistência tirada da raiva do querer viver. Afonso preocupava-o, sabia que as condições em que o tinha deixado não eram as melhores para o seu estado, mas foi a única possível.


Passou a noite ali, sem se mexer. O tiroteio acabou por parar mas o silêncio, depois de um intenso combate é sempre angustiante. De madrugada, Fernandes saiu e tirou debaixo dos ramos, o corpo de Afonso Duarte e o de Sousa Aragão. Tarde demais. Afonso também não conseguiu resistir às hemorragias. Silenciosa e lentamente Cardoso Fernandes retirou aos companheiros as placas de identificação e o que traziam nos bolsos. Era pouca coisa, mas significativa. A foto da mulher do Sousa, (num compartimento de plástico no bolso do blusão) na neve, sorridente, ao lado do marido. O Afonso, para além de um crucifixo pequeno, em madeira negra, nada mais tinha a não ser o espólio normal de um combatente em acção. Olhou para os corpos sem vida dos colegas. Ajoelhou-se junto deles e chorou. Não os queria deixar ali mas, no momento, não sabia o que fazer. Desejou que alguma coluna passasse e os levasse, o que ele reconheceu ser improvável, mas havia que tentar. Alguém teria de passar, mais cedo ou mais tarde.


-Eles merecem uma sepultura em Portugal. Disse para si próprio.


O capitão arrastou-se para cima da encosta com o corpo de Afonso e depois com o de Sousa. Sentou-os, encostados a uma árvore, à beira da estrada que passava não muito distante do rio. Olhou-os fixamente. A visão era horrorosa. Os corpos inchados, cheios de mosquitos e de sangue coagulado provocaram calafrios. Fernandes cerrou os lábios dolorosamente. Pela dor de ver os companheiros mortos. Pelo cansaço. Pela tensão dos últimos sangrentos dias e pela fraqueza. Acabou por desmaiar e cair desamparado sobre os cadáveres dos colegas.


A vida, o destino, a sorte, têm caprichos inexplicáveis e mesmo que sobre eles se queira encontrar lógica, raramente o desejo é satisfeito. No caso do capitão Fernandes o decorrer dos acontecimentos revelar-se-ia absolutamente imprevisto. Desmaiado, durante largas horas, o seu estado físico fragilizava-se gradualmente. Não foi, porém, nenhum combatente que encontrou o quadro macabro dos três oficiais do Exército Português, parecendo mortos, juntos a uma árvore. Foi um camponês. Já idoso. Ao passar, maquinalmente, pelo trajecto que fazia habitualmente, foi alertado por algo que, de princípio, não conseguiu entender bem do que se tratava. Parou. Aproximou-se com cuidado daquilo que lhe pareceu ser um monte de roupa. Depois, vendo melhor, reconheceu ser um homem que estava deitado sobre outros. Admirado e, com desconfiança, ficou parado frente ao inesperado achado. Olhou, sem emoção, os militares e, julgando-os mortos, preparava-se para seguir o seu caminho quando, inesperadamente, viu que as pálpebras de um mexeram, embora esse fosse o único ténue sinal de vida.


Parou novamente e, sem tocar no militar, ficou a olhá-lo e a pensar no que deveria fazer. Deixá-lo ali ou acabar com ele? Acabou por pegar numa pedra com a qual se preparava para lhe esmagar o crânio e, quando estava prestes a largá-la, baixou os braços e fixou os olhos no vazio parecendo olhar para lá do horizonte. À memória veio-lhe a recordação do dia em que um militar português lhe salvou a neta, Diana, quando este a puxou e a pôs debaixo do seu corpo, protegendo-a da explosão de uma mina.


A guerra tem destas cumplicidades. Nem o homem velho nunca soube o nome do militar português que lhe salvou a neta, nem o oficial soube quais foram os intervenientes do encontro que ia sendo fatal. Salvar uma criança foi o motivo suficientemente forte que uniu dois homens que, movendo-se em campos contrários, foram capazes de superar rivalidades e guerras. Depois, cada um partiu para seu lado sem dizerem uma única palavra. Nem o velho delatou a presença de um militar em território que não era o seu, nem o oficial o matou ou aprisionou. Em silêncio, e talvez sem se aperceberem, arquitectaram e concretizaram um perfeito e sábio acordo de cavalheiros. O homem idoso já não tinha coração para se sensibilizar. Os sofrimentos eram constantes -vivia no meio de guerrilhas devastadoras- mas, mesmo assim, lembrou o encontro e, lentamente, pousou a pedra no chão. Ficou parado a olhar para os militares caídos e acabou por os arrastar. Rapidamente confirmou que dois estavam mortos. Esses, deixou-os num local mais visível para que fossem encontrados pelos seus camaradas e, assim, lhe pudessem dar uma campa e o outro que ainda respirava, escondeu-o numa zona bem camuflada Depois, partiu com determinação rumo a casa.


Voltou ao local mais tarde, já quando o sol gordo e muito vermelho parecia cair do céu. Com ele veio um homem mais novo (o pai da neta) que carregava uma pequena trouxa com roupa com a qual vestiu o militar sobrevivente(o capitão Fernandes). Com a cumplicidade do fim da tarde retiraram o corpo da zona onde estava escondido e dirigiram-se para a cubata de colmo onde viviam. Uma mulher também idosa que tinha sido previamente avisada pelo marido, aguardava pela chegada do militar. Para ele já tinha preparado o canto onde ficaria até recuperar forças. Ou morrer. Deitado sobre a esteira o militar não dava sinal de vida, a não ser através de uma débil respiração que espaçadamente lhe fazia mover o peito. A mulher olhou-o e torceu o nariz. De mãos nas ancas andou de um lado para o outro no interior até que parou e decidiu tomar uma decisão: tratar do ferido.


Completada a segunda fase da operação de socorro que foi deixar o militar ferido nas mãos da mulher os dois homens saíram e, junto a um bidão velho, colocado nas traseiras, atiram para dentro dele o camuflado com tudo o que estava nos bolsos (nada lhes pareceu interessar).Taparam-no parcialmente e queimaram as roupas que se poderiam tornar denunciadoras caso fossem descobertas. A operação não foi demorada, e não levantou suspeitas aos outros moradores das seis cubatas em redor, porque tudo foi feito com a cumplicidade do dia ainda por nascer.No interior, a mulher olhou para Cardoso Fernandes e perguntou a si própria se ele se salvaria. Despiu-o com gestos firmes e reparou nos vários ferimentos espalhados pelo corpo. O mais grave pareceu-lhe ser o do estômago. A ferida era profunda e o muito sangue coalhado dava-lhe um péssima aspecto. Não perdeu tempo em mais análises. Energicamente lavou-o e passou pelo corpo do capitão um líquido obtido da trituração de diversas folhas ao qual juntou uma espécie de azeite avermelhado. Enrolou o corpo em folhas verdes, largas e longas e passou-lhe pela testa uma espécie de pomada branca. Em seguida atou-lhe um pano vermelho à volta da cabeça. E esperou.


No dia seguinte, Mãe Maria, era este o seu nome, levantou com cuidado a cabeça do militar e deu-lhe de beber, muito lentamente, um caldo morno. Durante sete dias o tratamento intensivo foi feito com cuidado e com a sabedoria daqueles que conhecem os poderes ocultos da vida e sabem das propriedades curativas das ervas medicinais que aprenderam a dominar através dos pais, e estes de gerações e gerações anteriores. Duas vezes ao dia, nunca à noite, ajoelhava-se na esteira onde o capitão estava deitado e passava-lhe sobre corpo um fumo de cheiro acre-doce e atirava as cinzas para o lado como que fazendo um círculo cinzento onde, na sua maneira de pensar, nada passaria dali e nada entraria. Foi uma forma de isolar não o corpo mas o espírito do militar ferido. Sucederam-se muitas rezas sibiladas em murmúrios monocórdicos. Horas de ladainhas imperceptíveis. O tratamento acabou por resultar. Uma manhã, quando o marido foi ver o ferido reparou que ele estava de olhos abertos e com um ar tranquilo. Demasiado tranquilo. Apático, sem qualquer expressão. Se não fossem as suas cores um pouco mais vivas do que há semanas atrás, podia dizer-se que parecia morto. Mas não, a respiração era agora mais forte e ritmada. A surpresa apanhou-o desprevenido e esboçou um sorriso disfarçado. Olha para o militar e disse-lhe num péssimo português que o tinha salvo, nem ele sabia bem porquê, mas agora que estava curado tinha de se ir embora o mais depressa possível.Gregório e Maria deixaram-no estar mais uma semana. A mulher não desistiu do tratamento e fez de uma espécie de leite azedo, que coalhava ao sol, um poderoso aliado já que os efeitos foram miraculosos. Cardoso Fernandes recuperou forças, apesar de não perder o ar apático, nunca conseguiu balbuciar uma palavra sequer.


Nunca mais falou. Os ferimentos e o estado de choque tinha-lhe deixado, por certo, sequelas graves.Uma noite, Gregório ajudado pelo genro, o Fernando, vestiram o capitão com roupas de camponês e levaram-no para fora da cubata. Depois de muito andarem, carregando o militar nas costas, acabaram por o deixar num trilho que era frequentemente patrulhado pelas forças portuguesas. Tiveram o cuidado de lhe limpar bem a cara para que se visse facilmente que era branco, o que contrastava com as roupas camponesas, mas daria seguramente, uma pista aos militares.Também se podia dar o caso de passarem por ali elementos de algum Movimento Angolano e, se assim fosse, seria muito difícil o militar salvar-se. Eles não o iriam poupar.


-A guerra é assim! -Disse Gregório ao Fernando.


-Vive-se, sobrevive-se ou morre-se. Nós já agradecemos o que o outro nos fez pela Diana. Não podemos fazer mais nada. Das nossas mãos já não sai mais poder. O resto, é como espírito dele.



Deixaram-no encostado a umas grandes pedras, tendo primeiro o cuidado de fazer uma operação de limpeza nas redondezas porque se aparecesse algum bicho, o doente, débil como estava, não podia fazer qualquer gesto de defesa.



-O homem não se mexe! Mas olha que a mãe Maria tratou bem dele e quando ela trata de alguém, cura! Tu sabes, não é Fernando?


-A mãe Maria tem vida nas mãos. Ela sabe o que ninguém sabe. Disse Gregório falando com os seus botões.


Passados três dias uma coluna passou pelo trilho e encontrou sem dificuldade um homem que olhava fixamente mas não via ninguém. Que não falava e que apesar de estar vestido à camponês, era branco.Não escondendo a admiração que sentiram pela descoberta feita os elementos da coluna, depois de patrulharem minuciosamente a zona, pegaram no homem e sentam-no no banco da Berlier. Cardoso Fernandes não reagiu. Quando a coluna partiu, um homem velho escondido por várias pedras, ficou contente. Tinha lá ido todos os dias, dar de comer e de beber ao desconhecido, de quem nunca soube nem o nome nem o posto. Escondido, espiou sempre até que apareceu alguém que pudesse salvar a vida daquele homem. Ficou feliz por serem soldados inimigos, por isso amigos do ferido que, entre os seus, tinha possibilidades de recuperação.Quando as viaturas partiram Gregório olhou para o local onde o doente tinha estado mas acabou por partir, decidido a não se lembrar mais do branco que, um dia, encontrou moribundo e que ele recebeu na sua casa, com vontade de o salvar.


Foi uma jogada bonita da guerra. Foi um virar de folha na violência que mata animalescamente. Foi um acto de um homem que, apesar dos morteiros, minas, granadas e balas, ainda lhe batia no peito um coração grato. O capitão Fernandes chegou à capital dias depois (foi transportado do Luso) e deixado nos cuidados médicos do Hospital de Luanda, onde lhe diagnosticaram amnésia, desidratação e vários traumatismos. Não conseguiram saber nada a seu respeito. Estranhavam a cicatriz na zona do estômago que parecia ser recente mas não era bem perceptível como teria sido tratada (estava excelente) nem quando. O doente continuava sem reacção: não via, não falava e parecia não ouvir. Estava agarrado a um mundo onde só ele se projectava, movia e entendia...

4 Comentários:

Blogger JORGE disse...

Com o devido respeito por quem escreve.
Acho lirismo demais, para mim e para quem esteve DEBAIXO DE FOGO e com alguns mortos

14 de março de 2010 às 19:10  
Anonymous super rato disse...

muinto se fala do leste angola mas quem esteve nas terras do fim do mundo pois todo o leste percorremos desde 1967 a 1969 não sabe metade do que la vivemos eramos os super ratos do leste cart 1701 bom ano de 2011

1 de janeiro de 2011 às 18:59  
Blogger MEB disse...

Jorge

Reparei agora que o meu comentário feito em Março de 2010, não foi publicado! Erro meu, possivelmente. Quanto ao lirismo, quero dizer-lhe que acho muito bem que tivesse tornado público o que sentiu ao ler o meu texto. Tem esse direito.

Quanto ao meu respeito por aqueles que combaterem e morreram debaixo de fogo, esse sentimento, Jorge, não pode aquilatar. Eu participei em várias missões. Sei o que é ver morrer o amigo do lado. Felicidades

1 de janeiro de 2011 às 22:46  
Blogger MEB disse...

"super rato", boa noite. Tem razão, assim eram conhecidos. O Leste, na realidade, é mais falado. Todavia, As Terras do Fim do Mundo, fizeram história. Retribuo os votos de um bom ano de 2011.

1 de janeiro de 2011 às 22:50  

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