Brumas de Sintra

Ponto de encontro entre a fantasia e a realidade. Alinhar de pensamentos e evocação de factos que povoam a imaginação ou a memória. Divagações nos momentos calmos e silenciosos que ajudam à concentração, no balanço dos dias que se partilham através da janela que, entretanto, se abriu para a lonjura das grandes distâncias. Sem fronteiras, nem limites

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O meu nome é Maria Elvira Bento. Gosto de olhar para o meu computador e reconhecer nele um excelente ouvinte. Simultaneamente, fidelíssimo, capaz de guardar o meu espólio e transportá-lo, seja para onde for, sempre que solicitado. http://brumasdesintra.blogspot.com e brumasdesintra.wordpress.com

sexta-feira, 14 de março de 2008

NOITES NO ÚCUA (2ªparte)


…O jipe parecia uma máquina de saracotear. Todos tremiam naquele percurso de buracos que deveria ser longo, mas que teria de terminar antes de escurecer já que não seria possível acender os faróis para não revelar a posição da coluna. Continuava a ver-se embondeiros, uma árvore robusta, majestosa e dramática. Os seus ramos esguios, virados ao céu, contrastavam com o tronco bojudo, metalizado. Pareciam as catedrais das savanas.


-Nunca vi nada tão bonito parece que são árvores que rezam aos céus. -Disse Catarina. Ninguém lhe respondeu, nem o capitão.


-Não ouviram ou não ligaram. Pensou a jornalista que acabou por optar também pelo silêncio. Olhou disfarçadamente para o condutor e confirmou que para ele só havia estrada. O seu rosto não deixava traduzir outra preocupação. Sem virar muito a cabeça, fixou o olhar no capitão que de G-3 ao alto, boné enfiado até aos olhos, não deixou ver se estava apreensivo.


À frente do primeiro e último jipe iam agora mais camionetas (cada uma com doze homens) com as respectivas escoltas. Catarina conheceu o capitão de uma delas. Era um militar excelente, que já estivera com ela noutras operações no Leste. Sorriram e cumprimentaram-se à distância. Nenhum dos dois podia imaginar que, em breve, numa outra missão, ele iria perder um pé, na explosão de uma mina.


-Sinto-me importante. Nunca tantos me guardaram. -Gracejou Catarina.


-Se chegarem, não será mau. -Pensou em voz alta o capitão.


-Só pode ser para me confundir, não acredito que o perigo nos espreite já aqui em pleno descampado com este Sol infernal. Não me consegue desmoralizar, vou mesmo ignorar o que ouvi. -Replicou a jornalista.


O percurso tornava-se gradualmente penoso e o pó era cada vez mais incomodativo, o que não só dificultava a respiração como deixava os olhos num estado lastimoso. Por sugestão do capitão, Catarina colocou um lenço à volta da boca e do nariz.


-Verde! Será que aqui é tudo verde? Pensou, lembrando-se das meias, das camisolas, camuflados, bonés.


A situação nada tinha de hilariante, mas foi a custo que conseguiu disfarçar uma incontrolável vontade de rir -visível manifestação nervosa. Pareciam uns cowboys montados em cavalos trepidantes. O cansaço deu os primeiros sinais, o corpo estava dorido e os pés inchados. O cenário ficou repetitivo com os embondeiros solitários cortando a imensidão dos espaços.


Viam-se alguns pássaros, invulgares e lindíssimos mas o silêncio, o Sol e as nuvens densas de pó amarelado eram os grandes companheiros do percurso. Catarina tentou fixar através dos óculos escuros a bola laranja do Sol que parecia estar mesmo por cima da sua cabeça. Sentiu tonturas. Tinha sede, a garganta estava áspera pela poeira, não conseguiu engolir e os lábios, já gretados, começaram a doer-lhe.


Há muito que o posto de controlo a caminho do Úcua tinha ficado para trás. O trilho de terra batida dera lugar novamente ao asfalto. Contudo, o estado físico da jornalista não se podia dizer que fosse dos melhores. Dorida pelos constantes saltos do jipe, sentiu-se abatida, mas sem disso dar o mais pequeno sinal.Apesar de protegidos com lenços, a poeira causava uma sensação desagradável e nem a água bebida lentamente resolvia o incómodo, apenas o suavizava. Os lábios, já quase em ferida, foram salvos pela experiência de Catarina no mato: ter sempre nos seus objectos pessoais os produtos próprios para cada caso. Mesmo assim, levou a mão à boca, defendendo-a do pó.


-Sente-se mal? Perguntou o capitão.


-Não, estou bem, obrigada. É a poeira. Ainda falta muito para chegarmos?


-Não, assim que passarmos a casa do cantoneiro estamos perto. Dentro de uma hora, se tudo correr bem, terminamos a viagem.


Palavras eram ditas e, sem se saber como, ouviu-se um grande alarido seguido de tiros e gritos. O jipe pára. Catarina, nada diz, sai precipitadamente e fica a seu lado, virando as costas ao mato. Olha para as outras viaturas e não vê ninguém, nem o capitão. Pareceu-lhe ser a única pessoa de pé, o que sabia ser errado; tinha de abrigar-se mas a inesperada confusão deixara-a atónita.


Um braço vindo por baixo do jipe puxa-lhe um dos pés o que a obriga a deitar-se no chão. Sentiu-se arrastada com violência para debaixo da viatura, mas não opôs resistência. Ficou apática, mas rapidamente se recompôs e aninhou-se entre as rodas, enquanto disparos que pareciam ser cruzados, tornavam o momento preocupante O tiroteio não durou muito mas foi forte. Na estrada, a coluna tinha-se dispersado. O silêncio voltou e surgiram os primeiros militares, dispondo-se rapidamente, com a arma em posição de disparo, junto das viaturas. Em seguida, deixaram a estrada e correram para o lado esquerdo. Catarina pegou na máquina e seguiu atrás do capitão.


-Caímos numa emboscada, não há tempo para nada, corra.


Os tiros voltaram a ouvir-se mas agora com mais intensidade. Dentro do capim, altíssimo, tudo eram sons indefinidos e aterradores. Catarina fotografou o que podia. Olhou para a estrada e já não viu os jipes, o que quis dizer que estavam longe. Os disparos sucederam-se sem tréguas, por vezes seguidos de silêncios breves e foi num desses espaços que alguém gritou desesperadamente:


-Matámos um elefante!


O efeito foi idêntico ao deflagrar de uma bomba. Todos se sentiram presos ao chão. De súbito, começou a escutar-se os rugidos vigorosos e doloridos de um elefante. A confusão foi total.


-Fujam, há um outro elefante ferido na zona.


E, num ápice, tudo ficou dantesco. O fogo alastrou-se rapidamente e, em escassos segundos, o som característico do capim seco a arder pareceu um rastilho de pólvora. Cercados pelas labaredas, o fogo adensou-se e nuvens negras cobriram o local. Foi necessário sair urgentemente. Na correria desenfreada, Catarina escorregou numa pedra mas, nesse preciso momento, sentiu-se agarrada pela cintura. Olhou para trás e viu o capitão com uma expressão carregada


-Ia cair mesmo em cima do feijão maluco (ervas que em contacto com o corpo fazem tal ardor, que só rebolando na areia atenua a dolorosa sensação), disse o capitão visivelmente preocupado.


Catarina, lívida, sentiu que estava no centro do maior furacão de medo da sua vida e não sabia se ia sair dele. Apesar de corajosa, por momentos, pensou que ninguém iria conseguir salvar-se. O calor sufocante e o fumo provocavam náuseas, tosse e lágrimas. Não se conseguia respirar. Os rugidos roucos, arrastados, demolidores, estavam cada vez mais próximos e as labaredas tomavam uma altitude imensa.Foram momentos dramáticos que geraram silêncios profundos e indefesos. Cada um tentou entender o que se tinha passado e como conseguiram escapar da situação. O capitão passou o cantil a Catarina e disse-lhe:


-Já tem para contar aos seus netos. Nem sabe do que se livrou.


-Do que nos livrámos! O risco foi idêntico para todos. Reconheço que acabei de passar o maior susto de toda a minha vida. Tem razão, sinto-me a tremer.


-Já não falta muito para chegarmos ao Úcua. Disse o capitão...

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