Brumas de Sintra

Ponto de encontro entre a fantasia e a realidade. Alinhar de pensamentos e evocação de factos que povoam a imaginação ou a memória. Divagações nos momentos calmos e silenciosos que ajudam à concentração, no balanço dos dias que se partilham através da janela que, entretanto, se abriu para a lonjura das grandes distâncias. Sem fronteiras, nem limites

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O meu nome é Maria Elvira Bento. Gosto de olhar para o meu computador e reconhecer nele um excelente ouvinte. Simultaneamente, fidelíssimo, capaz de guardar o meu espólio e transportá-lo, seja para onde for, sempre que solicitado. http://brumasdesintra.blogspot.com e brumasdesintra.wordpress.com

terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

CHOVE EM LISBOA


Bastaram umas horas de chuva intensa (superior à precipitação de todo um Fevereiro normal) numa madrugada que não se esperava tão agreste, embora se soubesse ir ser molhada, segundo os boletins emitidos pelo Serviço de Meteorologia, para que a Grande Lisboa e os distritos de Santarém e Setúbal ficassem num caos medonho.

As consequências foram dramáticas, assinalando-se até agora a perda de uma vida, o desaparecimento de uma pessoa, na zona de Belas, 2000 mil participações de ocorrências, a presença de 2200 bombeiros ajudados por 900 viaturas e um helicóptero. Largas dezenas de desalojados, deslocados, prejuízos materiais ainda por contabilizar, sem falar do pânico e do desalento daqueles que sofreram as consequências de tal intempérie


No filme África Minha (uma jóia de Sydney Pollack), há uma parte em que Meryl Streep, que encarna na tela a personagem da escritora dinamarquesa Karen Blixten, na sua angustiada aventura (no Quénia) com a plantação de café (criada pelo marido sem o seu consentimento) que, desde o início, tinha tudo para não ter um resultado brilhante, derivado à escassez de água na zona e à altitude em que fora plantado.


Tentando salvar esse investimento onde fora aplicado todo o seu dinheiro, Karen faz de tudo o que humanamente é possível, pensando triunfar contrariando a Natureza. Com a ajuda dos muitos empregados da fazenda, consegue ter uma reserva -uma espécie de lago artificial- com água desviada de um rio próximo.


Durante uns tempos a plantação é regada e, no seu tempo, os bagos de café começam a formar-se. Tudo parecia correr bem até uma madrugada em que a reserva de água, desviada do seu curso se revolta e salta vencendo (sem esforço) a barreira de sacos, pedras e areia que a aprisionava. Todos lutavam para travar essa fúria da Natureza mas aí, completamente esgotada, Karem põe um pé sobre uma rocha e, encharcada, exausta, diz:


-Chega. Parem. Não adianta


Derrotada, olha para a água rebelde que quebra todas as barreiras e, vitoriosa, sai (saudosa) ao encontro de um leito que lhe pertence.


- Esta água nunca deixou de viver em Mombaça!


Assim é Lisboa! Aprisiona o curso das águas debaixo de cimento, de alcatrão. Não quer respeitar-lhe nem a força nem o direito e, o resultado é idêntico ao das águas que a baronesa Karen não conseguiu prender na sua fazenda em África, no sopé das montanhas Ngongo. É assim em todo o Globo! Não há ninguém neste pequeno ponto flutuando no Universo que consiga vencer a Natureza.


A 26 de Julho de 1985 entrevistei para a revista “Mais” (de Carlos Cruz), o arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles. A extinção do Ministério da Qualidade de Vida era recente e o seu ex-ministro considerou, na altura, ser uma vitória para determinados empórios.


- O contra-poder que exercia, disse Ribeiro Teles, não interessava aos grandes negócios de betão, da construção civil, da celulose. Era a “voz” da consciência que se tornava urgente abafar. Foi um Ministério que começou a afirmar-se em diversos campos onde o País estava numa situação de autêntico caos que permitia toda a especulação com o solo urbano.


Foram horas de um diálogo interessantíssimo, em 1985. Já lá vão 25 anos e, hoje, ao reler o trabalho reconheci-lhe actualidade. Diversos temas foram abordados e, por exemplo, quando lhe perguntei sobre a criação da Reserva Agrícola Nacional, disse:


-Protege os melhores solos agrícolas e não permite que eles tenham outro uso que não o da agricultura. Foi uma lei muito positiva e evitou graves desastres ao País. Claro que nem sempre foi cumprida, muitas vezes foi torpedeada, mas existia e, era preciso acabar com ela…


Falou da sua luta em tentar organizar o sistema hídrico das linhas de água e do supremo interesse dos Serviços Hidráulicos em apenas fazer obras hidráulicas e não se interessar pela regularização desses cursos de água.


Falou da desertificação das povoações que se iria verificar daí a 20 anos (acertou em cheio). Apontou para a futura ameaça às paisagens protegidas e, sobre Lisboa, fez reparo ás torres que despontavam quando a Europa estava a adoptar outro tipo de construção e lembrou o relatório que a Alemanha tinha publicado, lembrando os efeitos negativos para quem habita para lá do sétimo andar.


Não esqueceu de referenciar o perigo das construções feitas sobre os cursos de água. Da gravidade que se estava a fazer na Baixa de Lisboa, impermeabilizando as terras, com lojas, garagens, túneis. A falta de espaços verdes.

-Não deixam respirar as terras, repetia frequentemente.


Falou muito e, claro, falou bem. O arquitecto Gonçalo Ribeiro Teles é, ainda hoje, um expert na matéria e sobre o temporal da madrugada que se abriu impiedosamente sobre a Grande Lisboa, Santarém e Setúbal não sei se dirá, mas é capaz de pensar:


-Com tanta asneira repetida, ano após ano, quando chove invulgarmente, esperam o quê?

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