Brumas de Sintra

Ponto de encontro entre a fantasia e a realidade. Alinhar de pensamentos e evocação de factos que povoam a imaginação ou a memória. Divagações nos momentos calmos e silenciosos que ajudam à concentração, no balanço dos dias que se partilham através da janela que, entretanto, se abriu para a lonjura das grandes distâncias. Sem fronteiras, nem limites

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O meu nome é Maria Elvira Bento. Gosto de olhar para o meu computador e reconhecer nele um excelente ouvinte. Simultaneamente, fidelíssimo, capaz de guardar o meu espólio e transportá-lo, seja para onde for, sempre que solicitado. http://brumasdesintra.blogspot.com e brumasdesintra.wordpress.com

terça-feira, 12 de fevereiro de 2008

RECORDAÇÕES DE TORONTO


Já se passaram anos, mas ainda recordo a minha chegada a Toronto (Canadá). A viagem tinha sido boa mas extenuante, dada às muitas horas de voo. Quando o comandante avisa que estamos quase a aterrar e o blá blá do costume: temperatura, não fumar, altitude, etc. apertei o cinto e preparei-me para chegar a uma terra que desconhecia por completo e para onde ia carregada de ilusões.

E -é importante este ponto- quando aquela fortaleza voadora (tinha dois andares), dá uma curva (que eu pensei ser a última da minha vida) fiquei pregada ao vidro da janela. Num rompante, surge perante o meu campo visual uma imensidão de luz, com tal intensidade e extensão que me deixou sufocada. Não conseguia respirar. Lembro-me de olhar, cá para baixo, para o brilhar de Toronto e quase desmaiar. Foi uma sensação invulgar que me apanhou completamente de surpresa. Nunca tinha visto tanta luz junta.

Desembarquei em piloto automático, estilo robot. Só me viria a refazer horas depois, já que deixar o aeroporto de Toronto e entrar na cidade, não era fácil. Havia que passar pela polícia de controle e, isso, demorou uma eternidade. Muitos dos portugueses que iam no avião nem chegarem a pisar terras do Canadá. Ficaram no aeroporto e embarcaram novamente para Lisboa, provavelmente por questões de papéis.

Quando saí do pequeno gabinete onde decorreu a entrevista com a polícia de emigração, transpirava. Pareceu-me ter lá estado anos! Cá fora, enquanto tentava descobrir as malas, assisti a episódios que hoje me fazem sorrir mas, na altura, estava demasiada nervosa para sentir fosse o que fosse: um senhor, já com alguma idade, português, do norte, tentava convencer na alfândega a passar um presunto e um garrafão de vinho. Ele falava português, eles, claro, inglês, e o caso resolveu-se depois de muito gesticular do português e da determinação dos funcionários. O presunto e o garrafão ficaram retidos, para grande tristeza do compatriota que não se cansava de lamentar o sucedido.

Quando peguei nas malas e segui as indicações para a saída -ainda estou a ver a porta envidraçada que se abriu automaticamente assim que ultrapassei o tapete. Num ápice, o quentinho do aeroporto foi trocado por um frio tão cortante e tão intenso que não me deixou (novamente) respirar. Engasguei-me, tossi, fiquei com os olhos a chorar. Uma lástima. Tudo pelos muitos graus abaixo de zero que se faziam sentir numa tempestada como já não havia há 50 anos no Canadá. Resumindo, foi uma entrada inesquecível.

Com o passar dos dias fui-me habituando a viver num excelente país, com uma boa estrutura social. Depressa conheci a Rua Augusta que era, como o nome indica uma rua só de comércio mas todo ele português. Que bálsamo, senti-me em casa. Quando se é emigrante tem-se saudades de tudo: do bacalhau, do café, da sopa, até das torradas. Passear por ela era regressar a Portugal. Era falar português, conhecer e dar-se a conhecer.

-Vim há uma semana de Lisboa -dizia, um pouco deslocada

-Já cá estou há 18 anos, respondia a dona da peixaria que mostrava todo o orgulho nos seus produtos portugueses

-Vai gostar disto, mas as saudades vão apertar, acrescentou

-Prepare-se, vai estar com um pé cá e outro lá. É sempre assim nos primeiros tempos.

Todavia, seria na Dundas, uma extensa avenida, transversal à Rua Augusta, que viria a conhecer um café que me marcou profundamente. Era frequentado por muitos portugueses. O café era horrível, eu bebia-o com natas ou leite, parecia-me impossível fazê-lo de outra maneira. Ali, o sucesso de vendas era uma espécie de aguardente branca ou, então, uísque.

Lentamente, comecei a reparar que a maioria dos clientes era homens e que quase todos ficavam encostados ao balcão, a beber e a pensar. Não falavam. De olhares fixos e perdidos no vazio, certamente nem viam a parede branca que estava à frente. A situação intrigou-me e sempre que lá ia, tentava analisar o comportamento de pessoas que me pareciam muito sofridas. Seria pela saudade? Mas, tão doloroso, assim?

Soube, mais tarde, que eram portugueses quase todos vindos de África, que estavam a sentir grandes dificuldades em esquecer a vida que tinham deixado na terra onde gostariam de ter continuado. Era grande a dificuldade com que exerciam as suas novas funções. Comecei a reparar-lhes nas mãos gretadas pelo frio, mal tratadas, quase em ferida, pelos trabalhos duros que executavam debaixo de temperaturas agrestes.


Muitos estavam na construção civil; outros, eram empregados em h0téis onde faziam de tudo, desde o lavar pratos a canalizadores. Outros, ainda, preparavam-se para ir para o oleoduto, no Alasca, e afogavam o medo e a tristeza nos copos de aguardente.

Um dia, já menos vulnerável à situação (na vida habituamo-nos a tudo), reparei num senhor com bom aspecto, até se podia dizer bem vestido, que cumpriu o ritual do chegar, cumprimentar, pedir, beber e ficar encostado ao balcão. Ficou e, passado pouco tempo tão lentamente como bebia o líquido branco do copo, começaram a cair-lhe pelo rosto lágrimas que não conseguiu controlar. Acabou por chorar convulsivamente, dobrado sobre si próprio. Tão convulsivamente que foi levado para o hospital.

Vim a saber que era um ex-gerente de um banco em Angola que tentou o Canadá, mas a adaptação estava a ser difícil. Ganhava pouco, o trabalho era duríssimo e ele sentia-se totalmente desajustado. Dias antes um outro português tinha-o encontrado nesse mesmo café e falou-lhe de uma possibilidade de trabalho que podia dar uns dólares extra: ser figurante num programa de televisão.

O trabalho consistiu em vestir-se de palhaço, pintar a cara e colocar com um enorme nariz vermelho. Tinha de enfiar a cabeça num buraco redondo de um painel florido. Uns outros figurantes tinham por missão de atirarem bolas de algodão que ao acertarem no nariz vermelho do palhaço, faziam acender uma luz no painel de flores.

Foi a gota de água que fez transbordar o copo, do seu conceito de dignidade.


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