A PROVA DE ESFORÇO
...Depois do café tomado à pressa Catarina iniciou, antes das sete horas, o plano de trabalho a partir do mapa elaborado anteriormente com as chefias, em Luanda. Ficou definido que na zona em que a jornalista se encontrava não havia interdições, o que queria dizer que podia percorrer o terreno e fotografar livremente.
-Proposta aliciante, mas nada fácil de concretizar...
Pensava para si própria quando desceu a encosta que a deixou no primeiro circuito dos obstáculos. Estava uma manhã linda, tropical, com todo o esplendor que só África pode ou sabe envolver. Como tinha optado por fazer o trabalho sózinha, naquele momento não podia imaginar o que a aguardava: nada mais, nada menos, do que passar por todos os obstáculos dos instruendos! Claro que não levava arma e não estava sujeita a tempos, nem tinha classificação a defender, mas o que se lhe deparou pela frente foi mais esgotante do que estar em operações de combate. Menos perigoso e menos tenso, é verdade, mas de um desgaste físico tão intenso que depressa se apercebeu da amplitude da profecia do capitão Fernandes:
-Prepare-se.Vai ser um dia muito duro.
Catarina desceu ravinas, subiu encostas, passou por fogos cruzados, atravessou fossos, rastejou debaixo do arame farpado, ouviu o rebentar de granadas num espaço mínimo e, disfarçando, pensou que tinha ficado sem tímpanos, mas nem pestanejou. Subiu e desceu cordas, atravessou com elas riachos e margens. Gritou para que parassem de disparar as G-3, no chamado Vale da Morte, e quando o começou a percorrer perguntava a si própria se todos a teriam escutado. Caso não a tivessem ouvido, as balas roçariam os seus pés. Logo, o segredo era manter-se a passo de corrida. Certo. Catarina não corre, anda, mas eles, os atiradores, saberiam mesmo que ela era uma jornalista que apenas estava em serviço de reportagem?
Pelo sim pelo não, decide, em boa hora, tirar o boné e deixar cair livremente a cascata de caracóis louros. Descoberta a forma de capitalizar a diferença mesmo ao longe, já que o tiroteio parou até a jornalista atravessar a zona dos disparos, Catarina, lívida, respirou fundo e continuou no trilho dos obstáculos seguintes, conseguindo ainda ajudar alguns instruendos que ficavam pelo caminho. Chegou mesmo a levantar um jovem altíssimo e forte que chorando convulsivamente e agarrado à arma dizia que desistia. Foi necessária muita força física, vinda não sabe de onde, diálogo convincente, seguro e hábil para o convencer a acabar a prova que acabou por recuperar. No dia seguinte o instruendo fez questão de agradecer à jornalista pela ajuda preciosa prestada em pleno cenário das provas.
Catarina tomou apontamentos, fotografou os instruendos nas diferentes provas de perícia e de resistência. Fez sete percursos o que totalizou catorze deslocações. Aí, desistiu. Decidiu não atravessar o lago da lama e dos bichos; melhor, contornou-o (faltou-lhe a coragem e, olhá-lo, foi uma agonia), exausta, deixou-se cair no chão. Estava no limite. Tanto, que nem reparou que à sua frente, distanciados uns setenta metros, os instruendos, nus, tomavam banhos improvisados, depois da exaustiva conclusão das provas. Estava no chão e assim ficou. Olhou-os, fixou os olhos na máquina que tinha nas mãos e decidiu resolver a situação; continuar ou voltar para trás e fazer todo o trajecto novamente?
- Não consigo. -Reconheceu Catarina
-Tenho de passar por eles. Não há outra alternativa. -Pensou.
A jornalista levantou-se, agarrou na máquina (não fotografou os instruendos) e começou a andar na sua direcção já que era a única saída, a não ser que tivesse decidido voltar para trás e fazer todo o trajecto que levaria ao obstáculo inicial: passar pelas cordas suspensas, descer a ravina que conduzia à vasta área das sucessivas barreiras. Andando, no sentido do acampamento, sabia que tinha de passar primeiro pela zona dos banhos dos instruendos, não vacilou apesar das pernas lhe pesarem toneladas. Andava mas não sabia o que se iria passar. Nunca chegou a saber como tudo aconteceu, apenas viu que todos eles, à sua passagem, se viraram de costas, abrindo uma ala por onde Catarina passou. O silêncio foi total.
A jornalista andava o mais rápido que as forças lhe permitiam e pelo rosto sujo de terra, de lama e transpirado, deslizavam lágrimas de muitas emoções. Tinha compartilhado essa inibição com mais de sete centenas de homens num impressionante imprevisto ditado pelo profissionalismo e pelo respeito. Foi um dia inesquecível da sua carreira. Esmagadoramente emotivo. Sentiu-se frágil e reconhecida. Eram já cinco da tarde quando ultrapassou a zona de instrução e chegou ao acampamento.
Esgotada, suja, mas radiante, pois tinha a consciência de ter obtido matéria para um esplêndido trabalho (acabaria mais tarde por ser premiado internacionalmente). Junto da camioneta, que na noite anterior lhe tinha servido de quarto deixou cair as máquinas e as pastas. Tirando as sentinelas não viu mais ninguém. Nem se importou, só queria dormir. E fê-lo, debaixo da camioneta do reabastecimento, junto ao enorme pneu para se resguardar do calor. Foi provavelmente um sono de poucas horas, mas profundo. Só acordou quando sentiu que a puxavam pelos pés e a luz vermelha de uma lanterna a fez abrir os olhos. Não conseguiu ver a cara de quem já a segurava pelos ombros.
- Meu Deus, fui capturada.
Convenceu-se disso, o que a deixou em pânico. Não houve qualquer espécie de diálogo, e Catarina continuou sem saber quem é que a levava amparada, nem sequer para onde. Não conseguiu dizer nada. O esforço do dia e a ausência de alimentos tinha-a deixado sem forças. Lembrou-se que, em princípio, não deveria correr perigo de captura já que não se tratava de acção de combate, embora no mato tudo pudesse acontecer! Quem quer que fosse que a levava fazia-o com cuidado, portanto não era uma presença hostil. Não raciocinou, deixou-se levar no escuro por alguém. O ar da noite fê-la despertar e, então, reage.
- O que se passa, caímos numa emboscada? -Pergunta.
- Não, esteja tranquila. Só precisa de dormir, mas nunca mais, por favor, ao lado do pneu do veículo de abastecimentos. Podia ter acontecido uma desgraça. Alguém se lembra de dormir debaixo de uma camioneta daquele porte? Ninguém, creio. Mas, você, por quem eu sou responsável, tinha de o fazer! Bem lhe disse que teria sido óptimo se tivesse ficado em Luanda. Eu sou o responsável pela sua segurança, lembre-se disso. Facilite-me o trabalho.
Reconheceu a voz do capitão, não ouvia bem o que ele dizia mas sentiu-se protegida. Chegaram perto de qualquer coisa volumosa, e por isso, pararam. Escutou-se o barulho característico de um fecho de correr. Acendeu-se uma lanterna e Catarina viu uma tenda redonda, grande. Lá dentro, um saco de dormir parecia esperar por ela. O capitão ajuda-a a entrar. Olhou-a com ternura, limpou-lhe com as costas da mão a cara que estava suja de lama e disse-lhe:
-Você está um verdadeiro desastre, espero que tenha merecido a pena. Durma bem. Amanhã tem de acordar cedo porque vamos para outra zona. Estão aqui as máquinas e as pastas. Acho que se esqueceu de uma coisa imperdoável. Tal como um militar nunca larga a arma também a jornalista não deveria largar, nunca, o seu material de trabalho.
- Touché. -Respondeu Catarina, sonolenta.
Ainda se olharam e ambos sentiram que ficou algo por dizer. O capitão saiu, e Catarina caiu dentro do saco cama, que nem estava aberto e dormiu profundamente, depois de um trepidante e desafiante dia sufocante de calor, de infindáveis quilometros percorridos, de obstáculos incríveis, de provas de esforço impressionantes, depois de agarrar os melhores ângulos, os melhores momentos, imagens que cheias de vigor acabariam por lhe proporcionar a realização de um trabalho notável...
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