Brumas de Sintra

Ponto de encontro entre a fantasia e a realidade. Alinhar de pensamentos e evocação de factos que povoam a imaginação ou a memória. Divagações nos momentos calmos e silenciosos que ajudam à concentração, no balanço dos dias que se partilham através da janela que, entretanto, se abriu para a lonjura das grandes distâncias. Sem fronteiras, nem limites

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O meu nome é Maria Elvira Bento. Gosto de olhar para o meu computador e reconhecer nele um excelente ouvinte. Simultaneamente, fidelíssimo, capaz de guardar o meu espólio e transportá-lo, seja para onde for, sempre que solicitado. http://brumasdesintra.blogspot.com e brumasdesintra.wordpress.com

sábado, 3 de maio de 2008

AS ESTRELAS DA CACHOEIRA


…Passada a casa do cantoneiro (um marco histórico num percurso já feito por largas centenas de instruendos que, na zona, faziam a segunda fase de instrução, a prova da sede), uma pequena casa em ruínas, a coluna rapidamente chegou ao acampamento. Parecia a coluna do desespero: famintos, sequiosos, rotos, sujos e queimados. A maioria ficou na enfermaria, uma enorme tenda (devidamente camuflada) preparada para o efeito, onde o médico e os enfermeiros os receberam tentando minimizar rapidamente tanto sofrimento. A desidratação era quase total.


Catarina sem perder tempo, fotografou incessantemente, mas fê-lo com esforço. A luz estava a empalidecer e, por isso, a jornalista pouco tempo teve para fixar o resto daquele dia atribulado. O querer não foi, porém, mais forte que o esgotamento e o capitão ao vê-la tão exausta acabou por lhe indicar a tenda onde ficaria. Como sempre estava ligeiramente isolada e com sentinelas. Situava-se perto de um precipício, na zona da cachoeira. Era um local espectacular, com algo de irreal: pelas matizes de cores do fim de tarde que se misturaram e espalharam num céu já arroxeado.

-Só preciso de descansar uma hora.


Acabou por dormir profundamente e quando saiu da tenda deparou-se com uma escuridão total, que contrastou com o esplendor de um céu salpicado de estrelas enormes, com brilho de diamantes. Foi um céu riscado de muita luz que a envolveu aquela noite, tornando-a única. Sentou-se numa pedra, em puro deslumbramento, e olhou o firmamento. Respirou fundo, tal como era seu hábito sempre que enfrentava situações invulgares. Distendia e contraía o abdómen, lentamente, sentindo o oxigénio a vitalizar-lhe o corpo. Era uma espécie de ritual que fazia funcionar quando a luz vermelha a alertava para tensões descontroladas. Há anos que era assim!


Respirar fundo permitia que se libertasse do pânico e do nervosismo. Era o seu modo seguro de readquirir a paz e a serenidade. Sentiu isso naquele instante, tal como se sentiu projectada em direcção aos pontos de luz prateada e cintilante que piscavam no céu distante e, simultaneamente, tão dentro das suas mãos. Depois da intranquilidade de um dia passado em sobressaltos sucessivos, o silêncio da mata e o som cantante da cachoeira teve nela um efeito calmante. Deixou-se estar ali, sem testemunhas, respirando o fresco nocturno, saboreando a beleza envolvente do cenário. Estava a viver momentos que a sua memória gravaria intensamente. Respirou fundo uma vez mais. Sentiu-se bem.


Olhou para a imensidão à sua frente, sem verdes nem contornos de vales ou de montanhas, apenas uma estrada sem fim, gloriosamente negra e brilhante pareceu quer indicar-lhe que nada terminava ali. Levantou-se e foi à tenda buscar o blusão camuflado, bastante largo mas dentro do qual se sentiu protegida da humidade. Meteu as mãos nos bolsos e andou, sem direcção certa, à procura de comida e de gente. Não teve sorte. Acabou por encontrar um grupo de oficiais que a levou à área da cantina, que mais não era do que umas tábuas dispostas em forma de mesa e, curioso, perto da sua tenda.


-No mato, à noite, tudo pode acontecer! Se a cantina fosse lobo tinha-me comido, tão perto que estava. Sorriu e esperou pelo jantar, composto por uma lata de atum, pão aquecido (deferência feita a uma jornalista simpática, adiantou o cozinheiro), salada de frutas e o indispensável café (em copo de alumínio, claro). Ah! E umas bolachas que, apesar de pouco apetecíveis (eram mesmo duras), Catarina saboreou lentamente.


Enquanto ia comendo e conversando pensou para si que, fora daquele ambiente era muito difícil às pessoas que nunca tinham estado no mato e nunca tinham sentido a emoção da verdadeira união que ali se vive -quer em tempo de conflito ou de paz- entender a salutar convivência que natural e sadiamente cresce nos cenários de guerra. A amizade fortalece-se, a solidariedade é a nota dominante. Ali, é o espaço onde o individualismo não pode existir. Em cada um há no espírito a certeza do que o que é agora pode não ser logo. A morte espreita e faz desenvolver o que de melhor há na alma humana. A guerra faz isso: destrói e faz sobreviver, unindo forças e impossíveis. Nos campos de muitas batalhas e dentro de muitos corações dilacerados pelo medo, pela angústia e pelo desespero, nascem e morrem cobardes e heróis.


Catarina acabou por se deitar tarde. Antes de entrar para a tenda olhou demoradamente para o negro da noite cortado pela luz fortíssima das estrelas que iluminavam toda a zona do precipício que dava para a cachoeira Aí, escutou os programas que deixou gravados em Luanda, para a Rádio Ecclésia, verdadeiros êxitos de audiência. Soube-lhe bem ouvir as melodias que tinha previamente seleccionado, e até a sua voz lhe pareceu mais bonita, diferente. Os programas escutados debaixo das estrelas tinham um outro impacto e ficavam favorecidos pelo intimismo em que a Rádio é pródiga; além disso, a magia da noite singular funcionava como um verdadeiro feitiço.


Regressou à tenda e deixou tudo em ordem para o dia seguinte: mudou as pilhas do gravador, seleccionou cassetes e agrupou blocos de apontamentos, a máquina e os rolos estavam no estojo. Finda a tarefa preparou-se para dormir. Confirmou se as sentinelas estavam no seu posto e entrou no espaço fechado e verde com a sensação de solidão protegida. Já dentro do saco-cama, com as mãos cruzadas debaixo da cabeça, escutou o silêncio da grandiosidade da mata, toda ela cheia de ruídos únicos e característicos (como o sucessivo descarregar das armas. O clique, seco, dos carregadores a abrirem e a fecharem, foi um som que nunca mais esqueceu), mas o cansaço foi tanto que não tardou a adormecer. Acordou mais tarde com uns ruídos estranhos, dentro da tenda, facto que a deixou receosa. Não soube o que fazer, não se mexeu, mas precisava de encontrar a lanterna. Tentou localizá-la e, ao mesmo tempo, sair pelo lado da lona que antes de se deitar tinha levantado para qualquer emergência. Não viu nada, mas teve a certeza que não estava sozinha.



A sensação foi terrível, não fazia nenhuma ideia do que se estava a passar mas teve um mau pressentimento. Sentou-se e, quando se preparava para gritar, chamando a atenção das sentinelas, uma mão tapou-lhe a boca e um braço imobilizou-a. Escutou, então, uma voz sussurrada ao ouvido que a tranquilizou.


-Não grite, está tudo bem…

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