MI CA FIA
...O voo de Bissau para Bolama não foi demorado e a mancha de verdes matizados, assinalando uma ilha maior entre muitas outras mais pequenas, em breve apareceu recortada no mar. Em pouco tempo o mosquito voador como Catarina chamava à avioneta (uma Dornier) estava sobre a pista e, em breves minutos, a aterragem concluiu-se. Na perfeição, o que deixou Catarina feliz porque andar naquelas pequenas borboletas tinha, para ela, o se quê de (muita) audácia. Deslocar e aterrar eram operações delicadas para a jornalista que considerava quase milagre quando o avião parava de roncar e de andar, no asfalto, na terra ou numa qualquer clareira improvisada.
Chegada à pista, que de pista só tinha o nome, já que mais não era do que um trilho de terra batida e capim mal aparado, a avioneta afocinhou nos graus correctos e deslizou aos solavancos até parar. O piloto saiu da cabine, ajudou Catarina a descer, tirou a bagagem, deixou-a no chão e, inesperadamente, estende-lhe a mão numa cordial despedida.
- Onde é que vai? -Pergunta Catarina admirada.
-Tenho de partir para chegar a Bissau antes que anoiteça. Isto não anda de noite, como sabe. Os soldados ficam consigo, esteja tranquila que tudo vai correr bem. Não tenha medo, Bolama é uma ilha seguríssima. Estão cá os principais cabecilhas do terrorismo!
Foi a rir que entrou para a avioneta no regresso a Bissau. Catarina olhou para o aeroporto (!) e, se não fosse uma calejada repórter de guerra, tinha caído redonda no chão vermelho. Um enorme barracão, sem porta, duas janelas de vidros partidos, e um tecto velho, assinalavam o hangar. Guardando o edifício estavam dois soldados, para os quais Catarina se dirigiu. Estes, prontamente se perfilaram e fizeram continência e, num gesto rápido (inesperado), dispararam dois tiros para o ar.
-É agora.Vou ficar aqui e ninguém me ajuda. Boa tarde, disse Catarina de coração apertado. Disparam porquê? Embora tentasse não conseguiu entender a resposta e deu por si de boca aberta a olhá-los de uma forma atenta, fixa, admirada, até que um deles decidiu tomar a iniciativa de lhe pegar braço.
- É agora, oh! Deus...O soldado acabou por lhe fazer sinal para se sentar num banco tosco localizado no lado esquerdo da parede. Catarina, ficou mais tranquila; agradeceu e esboçou um sorriso. Mas como é que eu estou aqui, sozinha, em pleno mato da Guiné, com o quartel de Bolama longe? O comandante sabia da minha chegada!
Sentou-se a pensar e a olhar para dentro do barracão. Viu muitos fardos de palha e não percebeu a que se destinariam. As paredes ameaçavam colapso mas estavam autografadas de alto a baixo, assinalando as largas centenas de militares que por ali tinham passado ao longo dos sucessivos anos. Havia duas janelas: uma quase perto do tecto e a outra situada na parede do lado esquerdo. Ambas velhas, sem demonstrarem ter qualquer espécie de cuidado. Vidros, não deveriam existir há anos. Tudo parecia estar no mais total abandono. Mas não deveria ser porque -pensou a jornalista- isto é o aeroporto da antiga capital da Guiné: Bolama! Tem história, é importante! No compasso da espera, acabou por dar por si a andar de um para o outro lado. Parou um pouco e, quando o fez, reparou na pista, rodeada por muito mato, exceptuando a clareira que permitia a aterragem dos aviões, de pequeno porte.
Era autêntico mato de África, bonito. Exótico. O cheiro era bom. O mato rasteiro cruzava-se com plantas coloridas, arbustos altos e, mais distante, árvores de grande porte onde não faltavam as palmeiras, árvores esplendorosas. O conjunto era agradável, convidava a olhar atentamente. Quando regressou ao hangar não deixou de cumprir o ritual da chegada ou da partida a Bolama: autografar a parede! Decisão que fez rir um dos soldados, mostrando uns invejáveis dentes brancos como algodão. Ainda hoje quando recorda a chegada e a partida de Bolama, a última imagem que a sua memória visual reteve foi a do barracão, do hangar.
Catarina transpirava abundantemente. O calor apertava sem dó nem piedade e o pó vermelho agarrava-se aos poros, dando uma sensação desagradável.Passada quase uma hora, começou-se a ver ao fundo uma intensa nuvem de poeira como se o Lawrence da Arábia viesse atacar. Afinal, era apenas o jipe de um capitão que, soube depois, chamar-se Valentim. Chegou encalorado e deixava transparecer um certo nervosismo.
- Boa tarde. Nem sei o que lhe hei-de dizer, mas a verdade é que nos esquecemos da sua chegada. Desculpe-me, sinto-me envergonhadíssimo. Disse tudo de uma forma rápida como se quisesse livrar de um peso incómodo.
- Esqueceram-se de mim! Que interessante e, já agora diga-me: como acabaram por se lembrar?
- Ouvimos os tiros de aviso. - Respondeu o capitão com naturalidade
- Ah! Então, os tiros, são o elo de ligação com o quartel?
-Também temos o telefone, mas a bateria está avariada. Como não há outra alternativa de comunicação, os tiros resolvem perfeitamente o problema. Quer subir? Catarina entrou para o jipe não sem antes se despedir dos soldados que, apesar de lhe terem pregado um grande susto, foram a sua primeira companhia em Bolama. O jipe penetrou em território desconhecido, mas que reuniu desde o início as características marcantes da Guiné que conhecia de outras paragens: muito verde, cheiros inebriantes, o ar quente e húmido, um conjunto perigosamente incómodo mas, irresistível. Os trilhos sucediam-se em curvas apertadas, embora o território fosse plano o que permitia, na época das chuvas, ver ao longe as nuvens carregadas de água aproximarem-se, lentamente. Foi em Bubaque que uma vez correu (loucamente) à frente da chuva, fê-lo com alegria pura como se fosse uma criança feliz. Claro que acabou por apanhar mesmo as águas diluvianas que durante uma hora inundaram a zona. Encharcada e alegre nunca esqueceu a acção revitalizadora que a situação lhe provocara. Passada a tempestade a luz voltou a brilhar com todo o seu esplendor como se chuva fosse coisa que não tivesse existido-nunca- naquelas paragens.
Lembrava-se disto sempre que falava da Guiné e de um pensamento que escutava frequentemente. É um lugar, onde na época das chuvas, um pau espetado no chão, floresce! Ao lembrar estes factos passados, na sua anterior viagem ao território, sorriu. Pormenor que não passou despercebido ao capitão.
-É bom vê-la assim, pensava que vinha encontrar uma jornalista mal-humorada.
- Esqueceu os óculos...
- Claro, de óculos e muito executiva. De nariz arrebitado com a verdade escondida nos bolsos. Superior.
- Que bela ideia tem das jornalistas! Diria que é um perfil mal delineado, distorcido. Deve conhecer poucas.
- Lá isso é verdade! Quem é que vem para aqui, sem ser militar? É preciso ter um pouco de loucura, não me leve a mal, mas estou a olhar para si e nem estou a acreditar. Bom, a decisão é sua. Seja bem-vinda. Estou aqui para lhe assegurar protecção.
-Obrigada. Eu compreendo a sua admiração mas, esta, é a minha profissão. Dá para perceber?
Por entre diálogo e solavancos, naquela Guiné colorida e cheirosa, o jipe ia galgando a distância que separava o aeroporto do quartel de Bolama. Não se pode dizer que Catarina estivesse nos seus melhores dias. Era muita coisa junta: a surpresa, a espera, o calor, o pó e, ainda por cima, aquele capitão tinha o condão de irritá-la.
- Este trajecto não é perigoso?
-Perigoso, como?
- Não é um trajecto minado, não são habituais emboscadas? O trivial num cenário de guerra. O que mais poderia ser! - Pergunta Catarina, admirada (ou irritada?)
- Bombardeamentos feitos por aviões fantasmas, por exemplo...
- Já entendi, é mais um militar que olhou para mim e pensou: mas por que diabo esta fulana vem para aqui atrapalhar a nossa pacatez?
- Pacatez, desculpe, mas é preciso ter lata. Você sabe lá o que é guerra...
- Não sei! Pensa que se fosse tão maçarica como você eu andava por aqui? Venho de Angola, não esqueça. Não estou nem cacimbada, nem ando à procura de emoções fortes. Sou uma profissional experiente, senhor capitão.
- Chamou-me maçarico!?
- E confirmo. Poupo-lhe o trabalho da pergunta, reconheço pelo tom de pele. Se estivesse cá há muito tempo, portanto se já estivesse tarimbado, tinha adquirido a cor semi-amarelada-esverdeada que caracteriza os militares da Guiné. Conheço-os muito bem. Não se esqueça que não caí aqui de pára-quedas. Desci numa Dornier e venho de Angola ou, por acaso pensa que por lá se estão a viver tempos de maravilha?
- Está bem, tréguas, peço desculpa. Vamos entrar em Bolama. Na belíssima e misteriosa Bolama. É uma possibilidade que muitos gostariam de ter, sabe? Tirando as missões que temos de fazer, longe daqui, Bolama é, mesmo, pacata. Praticamente só temos arroz para comer mas há aqui umas frutas, umas ostras, umas delícias que nem imagina. Olhe aquele jardim. Lindo
- Estou mesmo a ver! Poeira, calor e mosquitos...
Por ironia do destino, Catarina reconheceu ter-se precipitado e, mais tarde, deu a mão à palmatória. Assim que o jipe entrou no espaço da ex-capital da Guiné, a jornalista começou a admirar o que ainda restava de uma presença imponente. O conjunto era, inegavelmente, bonito. O jipe entrou numa pequena estrada, ladeada por árvores, que conduzia ao quartel. Em frente deste uma árvore enorme, muito alta e frondosa, florida, como se fosse uma intensa nuvem rosa. Soube o nome dessa árvore mas acabou por se esquecer. Porém, ao longo dos anos, nunca deixou de a visualizar. Essa árvore era um dos marcos das suas fortes recordações, era o passaporte particular para entrar na sua Bolama, sempre que lhe apetecesse.
A chegada ao quartel foi inesperada e emotiva. A esperá-la, o comandante da Unidade, a sua mulher (muito simpática) e todo o grupo de oficiais, sargentos e praças. Catarina sentia-se uma almofada de pó e, dentro do possível, agadeceu a recepção e quando pensava que iria, finalmente, tomar um duche, escutou alguém dizer-lhe:
-Por aqui. O almoço está à espera.
- Mi ca fia, sussurrou para si própria, com vontade ou de rir ou de chorar? Estava indecisa...
(A crónica de hoje foca, uma vez mais, Bolama)
Etiquetas: Bolama Magna Balanta Hotel Guiné Saudades
2 Comentários:
Ainda hoje chamam loucos aos que vêm para a Guiné. Mas louco é quem vem e não "fica"; pelo menos com esta terra no coração.
Que sensação esta de estar ligada à Guiné, através de um casual encontro via Net. Sabe, Ana, desde ontem que, através das suas fotos e crónicas, estou a contar melhor os grãos de terra batida das ruas de Bolama. Da azáfama de Bissau. Dos frangos do Asdrúbal. Fiquei ainda mais lá. Mil vezes obrigada. Do coração.
Enviar um comentário
Subscrever Enviar feedback [Atom]
<< Página inicial